Do tempo das diligências ao som digital

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As primeiras gravações em disco eram em meio mecânico e anos depois em fita magnética. A indústria fonográfica ameaçou voltar atrás antes de se render ao som digital. Entenda como isso aconteceu.

 

As primeiras gravações de voz registradas em todo o mundo tornam evidente o uso das propriedades físicas do deslocamento do som entre os meios: a pressão sonora pelo ar é amplificada por uma corneta e logo depois a onda mecânica resultante vai para uma agulha que corta um disco de cera.

 

O símbolo da Victor Talking Machine (depois RCA, com o selo His Master’s Voice) está ironicamente sentado diante de um cilindro de Edson, mas inserido no selo de um disco

O formato de disco, inventado por Emile Berliner, ganhou comercialmente do cilindro de Thomas Edson, embora historiadores argumentem ser de qualidade sonora inferior. O que se presume ter acontecido foi a facilidade de duplicação do disco, contra um cilindro que enfrentou diversos tipos de dificuldade nesta área.

Na foto acima o cãozinho inglês Nipper, símbolo da Victor Talking Machine (depois RCA, com o selo His Master’s Voice) está ironicamente sentado diante de um cilindro de Edson, mas inserido no selo de um disco!

A introdução da fita magnética

A fita magnética foi desenvolvida na Alemanha, mas ficou relegada a segundo plano por culpa da eclosão da guerra. Entre os espólios levados para a América, um militar carregou consigo um equipamento gravador de rolo e fitas fabricadas pela Basf, já com correção de resposta de frequência por corrente de bias.

Em 1948, a indústria fonográfica e o cinema começaram a fazer uso de fitas magnéticas, com amplas vantagens sobre o processo de gravação direto ao disco, como por exemplo, poder fazer várias tomadas, cortar e editar fisicamente a fita, etc., tudo isso antes de cortar o disco.

A liberdade de editar a fita, mesmo que com lâmina e fita adesiva, trouxe à indústria fonográfica um grande alento, e porque não dizer, economia na produção.

A construção posterior de decks Ampex e RCA, entre outros, ainda fruto do espólio da tecnologia alemã, influenciou na qualidade de gravação pelo simples aumento da velocidade da fita no transporte, podendo chegar a 30 polegadas por segundo.

Esse aumento de velocidade melhora a resposta de alta frequência, e a dinâmica da fita pode chegar ao nível de 60 dB. Hoje em dia é fácil observar o resultado deste avanço, através das edições em SACD da série Living Stereo da RCA, onde a matriz de 3 canais é literalmente transcrita para o disco.

Notem que já em 1948 começaram a ser lançados os primeiros elepês, cuja virtude era prolongar o tempo de duração do material gravado em cada lado, daí o nome de batismo “Long Playing”, conhecido depois como “Lp”, símbolo da Columbia.

Os discos eram transcritos em 33 1/3 rpm de rotação tangencial, com tamanhos de 12 ou 10 polegadas. O formato já havia sido tentado antes pela RCA, mas sem qualidade ou sucesso. Com a introdução da fita magnética e o microssulco no disco estampado, o som passou a ser chamado de “Alta Fidelidade”, e era mesmo!

“Retrocesso”

Pois não é que em 1959 os irmãos Sherwood e Doug Sax e mais o pianista Lincoln Mayorga começaram a experimentar voltar atrás e eliminar a fita magnética no processo de registro. Doug Sax, que depois se tornou um notório inimigo da gravação digital, argumentava que a fita magnética introduzia mais problemas do que virtudes.

Assim, eliminando a fita do caminho da gravação o som ficaria mais “puro”. Esse tipo de argumento tem base no raciocínio purista da teoria do caminho reto (“straight wiring”) usado na eletrônica analógica para o design de circuitos de amplificação.

Mais tarde os irmãos Sax e Lincoln Mayorga formaram o laboratório de corte de acetato com o nome de “The Mastering Lab”, em atividade até hoje. Em 1971, a experimentação de eliminação da fita atingiu o seu primeiro estágio, com o lançamento do disco “Lincoln Mayorga And Distinguished Colleagues”, cuja capa é um torno de corte de acetato:

 

A capa do disco “Lincoln Mayorga And Distinguished Colleagues” é um torno de corte de acetato

Muitos dos renitentes técnicos de gravação contrários ao som digital eventualmente capitularam de suas intenções de não aderir ao novo formato, e o que permitiu que os discos fossem depois reeditados em CD foi o fato inusitado de que, por bom senso e economia, todas as sessões de corte direto foram registradas em fita magnética e, acreditem se quiser, em alguns casos, em fita magnética digital!

Na década de 1970, houve um momento em que muitos audiófilos, acreditando estarem pagando um preço elevado por um disco de corte direto com edição limitada, se sentiram traídos quando as gravadoras acabaram por revelar que haviam feito cópias de segurança daquelas sessões em fita magnética.

O custo de produção de um disco impõe restrições financeiras duras de aturar por uma gravadora independente, que era o caso da Sheffield Lab. A ideia de cortar um acetato direto no estúdio impunha outra restrição: de que para manter a qualidade do disco prensado era preciso primeiro limitar o tempo de gravação por lado, e segundo limitar o número de discos prensados pela mesma estampa.

Ou seja, de uma dada sessão de gravação o tempo de audição seria curto (15 minutos por lado, na maioria dos discos) e o número de exemplares à venda tornaria um dado disco rapidamente um item de colecionador, com preços elevados.

A ideia, entretanto, seduziu outras gravadoras independentes. Uma dessas adesões foi o da pesquisa feita pelo selo Real Time, antes de aderir completamente ao som digital:

 

Disco de Duke Ellington com corte direto

A própria Sheffield Lab tratou de remasterizar o seu acervo e vender a mesma coisa em CD:

Lp com corte direto

Esses CDs mostrados acima foram prensados com banho de ouro, um absurdo em termos de preço e desnecessários em termos fabris. Uma cobertura de ouro não aumenta a qualidade do áudio nem precisa ser feita para “proteger a gravação do tempo ou do ambiente”.

O que chama a atenção nesses registros do Erich Leinsdorf, por exemplo, é aquela mania minimalista de colocar um microfone estéreo único na frente de uma orquestra sinfônica enorme, em um estúdio de proporções generosas (no caso eles usaram os estúdios da M-G-M em Hollywood). Isso era feito de modo a aumentar a coerência de fase entre os dois canais frontais e com isso ganhar ambiência da frente para trás do “palco” formado pelo som da orquestra.

Ouvindo aquele material com o equipamento de hoje, o que se nota é o que se poderia esperar de uma gravação deste tipo: alguns instrumentos se perdem no fundo, o som como um todo é pouco detalhado, embora a dinâmica orquestral seja relativamente mantida.

Em sessões como as do trompetista Harry James, a turma da Sheffield Lab confessa ter colocado um microfone “touch up” próximo do piano, ou seja, bem perto do instrumento para não perder detalhes!

A experiência auditiva tem revelado surpresas, e não somente com gravações minimalistas. Abaixo se pode ver, em tom de paródia, a vida dura de um engenheiro de gravação. Divirta-se:

Nos tempos dos discos de corte direto todos nós que nos envolvemos com a qualidade do som reproduzido em casa nos fascinamos com o resultado. Analistas da época bem mais experientes do que nós chamavam este tipo de gravação de “back to basics”, e eles tinham razão.

Tolos fomos nós de achar que a eliminação da fita magnética resultaria em algo milagroso. E não por coincidência eu tive discos de corte direto na minha coleção que soavam mal. O próprio Doug Sax admitiu depois que não bastava ser só “corte direto”, e aí ele foi honesto. Basta ler no site da própria Sheffield Lab, lá no finzinho do texto que, traduzindo, diz: “A Sheffield Lab entrou graciosamente na era digital com o Compact Disc, que mantém a mesma integridade musical e técnica, provando que existe mais em uma ótima gravação de o que meio de armazenamento escolhido”. Puxa…

Vendo as suas mais recentes remasterizações, em uma coisa eles acertaram: transferir a fita original de estúdio para PCM com 20 bits de resolução e depois reduzir com qualidade para os 16 bits do CD.

O resto, esta estória de “super analogue” e outras baboseiras, é tudo estorinha do boi tátá!

Outrolado_

 

 

A transição da gravação analógica para digital

A evolução do som no cinema foi claudicante mas inovadora

Quero abrir um site mas não sei se devo

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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0 resposta

  1. Paulo você é um Mestre na área de tecnologia !
    Brilhante matéria abordando os primórdios das gravações analógicas até a era digital.
    Eu li atentamente está matéria, e de certa forma achei mais coloquial tecer um comentário que você postou sob o serviço Spotfy, bem como as mídias rotativas. Sabe Paulo o grande problema dos jovens hoje em dia, é não terem tido a referência do que é na verdade a essência do áudio analógico, pois se acostumaram (aos MP’s 3 da vida) com a baixa qualidade do som super comprimido. Pena que os DVD ou Blu-Ray áudio não decolaram, e morreram na praia. Mas na contra mão disso tudo, houve o renascimento do Vinil. Nooossa isso foi um milagre. Agora os jovens terão oportunidade de saber e ouvir, o que é um som de graves profundos e agudos de alto expectro. Eu que trabalhei nos estúdios Transamerica em S.P. e tive o maior privilégio que um profissional poderia ter na área de áudio, ao utilizar a melhor máquina (gravador multipistas open reel) já feita pelo homem. Studer A80 MKII. Mas agora estamos vislumbrando uma luz no fim do tunel, pois o vinil é o elo inicial de ligação para a volta do audio analogico, na contramão de continuar avançando com o áudio digital. Mas no mais parabenizo pela sua volta, e vou divulgar a amigos cinéfilos e audiófilos, seu novo local das melhores materias.
    Forte abraço Paulo.

    1. Oi, Rogério,

      Interessante. Eu tive um amigo que fez estágio na Rádio Transamérica do Rio de Janeiro, ficava inclusive perto da minha casa. Um dia, ele me chamou para ver os estúdios recém inaugurados, que ficavam na parte de baixo da casa. Na parte de cima ficava a emissora, que transmitia som quadrafônico (acho que ninguém ouvia como tal, mas enfim). No estúdio haviam duas máquinas Studer em paralelo, acho que trabalhavam com 32 canais, se a memória não me trai. Este mesmo tipo de máquina Studer eu vi rodando recentemente no estúdio de mixagem da Som Livre, também levado por um amigo. Eu não sei que fim levou a Transamérica, mas todos os estúdios da Som Livre foram desativados e desmontados, situação aliás não muito diferente de estúdios que marcaram época nesta cidade, como os da RCA, CBS, Odeon, Musidisc, Polygram, etc., uma tristeza. Aquele meu amigo que me levou na Transamérica era o Sólon do Valle, falecido anos atrás, segundo eu soube por um conhecido em comum. Fazia décadas que a gente não se via mais, entre outros motivos porque a minha vida acadêmica me afastou de tudo isso.

      Rogério, eu te agradeço muito me classificar como mestre da tecnologia, mas na verdade eu sou um bioquímico de área médica, por anos aprendendo o que eu pude sobre áudio e assuntos afins, sem sequer ter tempo ou capacidade de ir adiante nesses campos. Quando ainda jovem cheguei a fazer estágio na sala de corte da Polygram, estudando corte de acetato, mas notei que era um campo muito restrito e não pagava lá dessas coisas. Nesta época, eu já estava começando o mestrado e por isso saí fora e fiquei mesmo na carreira científica, o que aliás fiz bem, porque os antigos técnicos de corte de acetato perderam a profissão, tal como os operadores de cinema que trabalhavam com película.

      Eu sempre achei um verdadeiro absurdo que um cientista de qualquer área não tivesse os olhos abertos para outros campos de conhecimento, mas infelizmente ao longo da minha carreira eu fui uma das exceções. Na explosão da microinformática, mais ou menos em fins da década de 1970, poucos dos meus colegas se envolveram com isso. Eu fiz o oposto, e sempre acreditei que não é preciso ser profissional de alguma área para ter envolvimento com ela. Este envolvimento em particular me deu importantes frutos usando o computador como ferramenta de trabalho, portanto nunca se tornou um tempo perdido. Sempre que eu posso eu tento passar isso ao leitor, que não existe cultura inútil!

      1. Paulo…
        Sem palavras. Só me resta agradecer-lhe, pois você (diante de tantos blogs, de tantas besteiras, e de coisas fúteis e inúteis na internet) é uma enciclopédia de conhecimento.
        Te admiro Paulo, obrigado por compartilhar seus conhecimentos, e tornar nos mais instruídos, você eu posso chamar de Mestre ! Forte abraço.

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